COMPLEMENTARIDADE > Origens
A ferramenta formal que permite dar conta tanto dos aspectos corpusculares e ondulatórios dos fenômenos quânticos é a
função de onda (introduzida por
Erwin Schrödinger em 1926, junto com a famosa equação que governa a evolução no tempo). Ela associa um número complexo

, chamado de
amplitude de probabilidade, a um ponto qualquer

no espaço e no tempo.

contém parte da informação codificada no
estado quântico do sistema,
e permite calcular a probabilidade dos possíveis resultados das medições envolvendo variáveis cinemáticas tais como posição e momentum. O quadrado do módulo da
função de onda,

, fornece, por exemplo, a probabilidade de encontrar o sistema em

um tempo
t (esse resultado importante pode ser derivado da
regra de Born). De acordo com as
relações de de Broglie, a
função de onda associada com o feixe de partículas, todas com momentum
p e energia E, é uma onda monocromática de comprimento de onda λ =
h/p e frequência ν =
E/h . Por exemplo, uma onda esférica fornece uma boa aproximação para a
função de onda associada a uma partícula propagando-se a partir de uma fonte pontual:
(

sendo a posição da fonte,

sendo o
vetor de onda regendo a propagação da onda, cujo módulo é 2π/λ). Note que, neste exemplo,

difere significativamente de zero ao longo de uma grande região do espaço. Isso significa que a distribuição que descreve a
probabilidade de detectar a partícula em uma dada posição não é localizada
. Sistemas bem localizados (i.e.
objetos corpusculares) não são associados a uma onda monocromática, mas sim com um
pacote de onda. Pacotes de onda podem ser considerados como sobreposições de um número infinito de ondas monocromáticas de diferentes comprimentos de onda,
interferindo destrutivamente em todos os lugares menos em uma pequena região na qual elas somam construtivamente dando origem a um sinal. As extensões espectrais e espaciais de um
pacote de onda devem obedecer às
relações de incerteza.
O
padrão de interferência observado no
experimento da dupla-fenda é facilmente compreendido em termos da
função de onda. As duas fendas dividem a onda associada com o feixe de átomos incidente em duas ondas esféricas secundárias

e

(como na
figura 3). A
função de onda 
do átomo após o filtro da dupla fenda é dada pela soma ponderada dessas duas ondas secundárias. Esta é a razão pela qual um conjunto de átomos produz
franjas de interferência no anteparo de detecção: os máximos e mínimos de
probabilidade refletem as diferentes relações de fase existentes entre as duas ondas

e

em pontos diferentes da tela de detecção (ver
figura 1 e a discussão relacionada).
Em analogia com o caso óptico, o espaçamento entre as franjas é proporcional ao comprimento de onda λ dos átomos. Isso explica porque a
interferência não pode ser observada em um
experimento de dupla-fenda com corpos macroscópicos. De fato, de acordo com as
relações de de Broglie, o espaçamento inter-franjas se mostra extremamente pequeno para objetos com grande massa. Tão pequeno, de fato, que nenhum detector físico tem resolução suficiente para distinguir a
interferência entre os máximos e os mínimos.
Em geral, entretanto, se um conjunto de sistemas mostra ou não
interferência não é uma questão de tamanho. Na verdade, depende da quantidade de informação disponível em princípio ao observador. Para deixar este ponto mais claro, vamos voltar ao
experimento da dupla-fenda e calcular a probabilidade
p(
x) de detectar um átomo em um ponto de coordenada
x ao longo do eixo perpendicular ao feixe de átomos. Seguindo a abordagem de Richard Feynman, nós consideramos os dois ‘
caminhos’ possíveis conectando a fonte de átomos a cada ponto da tela de detecção (ver figura 6). Nós vamos chamar os
caminhos vindo da fenda 1 de:
caminhos ‘↑’, e os
caminhos vindo da fenda 2 de:
caminhos ‘↓’.
Figure 6. Para cada ponto da tela de detecção é possível imaginar dois caminhos convergentes para o átomo, cada qual vindo de uma das fendas.
Nós também podemos associar um
vetor de estado
para os átomos seguindo o
caminho ‘↑ ’:

é o
vetor de estado que prevê para a posição dos átomos na tela a
distribuição observada em um aparato
no qual somente a fenda 1 está aberta (curva vermelha da
figura 4). Da mesma forma, nós chamamos de

o
vetor de estado que prevê a
distribuição observada num aparato
no qual somente a fenda 2 está aberta (curva azul da
figura 4). Tendo estabelecido essas definições, nós podemos discernir dois casos.
•
Caso 1 – CAMINHOS INDISTINGUÍVEIS
Suponha que não como saber se o átomo seguiu um
caminho ‘↑’ ou um
caminho ‘↓’ (os
caminhos são ditos, nesse caso, serem
indistinguíveis). O
vetor de estado representando essa situação é o seguinte:
Aplicando a
regra de Born ao estado (2), é possível derivar formalmente a
distribuição espacial
p(
x) esperada neste caso. Nossa discussão prévia sobre
funções de ondas nos dá a receita necessária para desenvolver esse cálculo simples. Nós obtemos:

e

correspondem às
distribuições vermelhas e azuis na
figura 4 respectivamente. Além da soma ponderada desses dois termos (curva verde A na
figura 4), a probabilidade associada com o estado (2) contém termos ‘cruzados’. É fácil de ver usando a eq. (1) que os termos cruzados oscilam como função de
x. Quando somada ao primeiro e segundo termo, esta função oscilante dá origem ao típico
padrão de interferência (curva verde B na
figura 4).
•
Caso 2 – CAMINHOS DISTINGUÍVEIS
Vamos agora considerar o caso no qual é possível discriminar os
caminhos (sem perturbar o movimento dos átomos). Suponha, por exemplo, que os átomos estão excitados e decaem emitindo um
fóton exatamente enquanto passam pela fenda (
figura 5). Detectar o
fóton emitido permitiria trazer a informação ‘por qual fenda’ para o nosso conhecimento. Assim, os
caminhos ‘↑’ e ‘↓’ agora são
distinguíveis (no sentido de que eles podem – em princípio – ser distinguidos). Seja
W o
fóton observável carregando a informação ‘por qual fenda’, e vamos convencionalmente chamar de ‘

’ o resultado de
W que indica a fenda 1 e ‘

’ o resultado de
W que indica a fenda 2. O
vetor de estado correspondente à nova configuração experimental é o seguinte
estado emaranhado, envolvendo o átomo e o
fóton emitido:
De acordo com a definição do
estado emaranhado, se o
fóton indica

, então o átomo vai seguir a
distribuição de probabilidade prevista pelo
estado 
, mas se o fóton indica

, então o átomo vai seguir a
distribuição de probabilidade prevista por

. Visto que cada fóton indica ou

ou

, fica claro que cada átomo é obrigado a seguir
ou a distribuição espacial associada com
ou a associada com

. Portanto, se olharmos para os átomos detectados
ignorando a informação fornecida pelofóton, nós teremos uma distribuição espacial que é simplesmente a soma ponderada das
distribuições de probabilidade previstas por

e

respectivamente. Os pesos das somas são as probabilidades dos resultados

e

ocorrerem, sendo ½ e ½.
Termos cruzados e, portanto,
franjas de interferência, estão ausentes neste caso (compare com a discussão sobre os
estados emaranhados de
partículas de spin ½ ).
O desaparecimento da
interferência quando a informação ‘de por qual fenda’ se torna, em princípio, disponível não deveria parecer tão surpreendente. Os
vetores de estado 
e

dos átomos podem ser expressos como
sobreposições tanto de
autoestados de posição ou
autoestados de momentum. Portanto, eles atribuem probabilidades não somente para posições diferentes, mas também para diferentes momenta. Em particular, o
estado 
atribui probabilidade 0 para os momenta indicando que ‘o átomo está vindo da fenda 2’, enquanto o oposto é verdadeiro para

.
Assim , disponibilizando a informação ‘por qual fenda’ implica medir(parcialmente) o momentum do átomo. Como a posição e o momentum são
observáveis incompatíveis, uma medição do momentum inevitavelmente modifica a
distribuição espacial dos átomos na medição subsequente de posição. A
interferência, em particular, é eliminada (ver a discussão dos
estados quânticos para mais detalhes).
As regras de Feynman são ferramentas poderosas que podem ser utilizadas em diversos contextos, desde que um conjunto de ‘
caminhos’ e as correspondentes
amplitudes de probabilidade tenham sido identificados. A
Interferência por si só é uma característica geral dos fenômenos quânticos, não sendo limitada às medições de posição. Não importando como um sistema é preparado, é possível encontrar um observável tal que a
distribuição de probabilidade associada com seus resultados mostre
interferência (o que significa que alguns resultados são encontrados com alta probabilidade, enquanto outros
nunca são encontrados). Em geral, se o
estado do sistema pode ser escrito como uma sobreposição dos
autoestados de um observável
A, as
franjas de interferência são observadas quando se está medindo um observável
B incompatível com
A. A condição para
interferência ser observada é que não haja informação disponível de ‘por qual
caminho’ (nem mesmo em princípio), i.e. que não exista nenhum observável
C cujos resultados estejam correlacionados com aqueles do observável ‘
caminho ’
A (ver o exemplo do
observável de spin).
Os efeitos de
interferência ilustram a conexão profunda entre o
princípio de sobreposição,
observáveis incompatíveis e
complementaridade. Essa ligação mostra por sua vez até qual extensão o núcleo matemático da teoria quântica é determinado pelas relações existentes entre os observáveis que nós usamos para ‘estruturar’ os fenômenos físicos (ver
implicações).